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VIVIANE TEIXEIRA

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O BANQUETE
Curadoria: Victor Gorgulho
09|12|21 - 08|01|22

“O Banquete”

 

À primeira vista, tudo parece teatro e encenação na obra de Viviane Teixeira. E, em certa medida, de fato é. “O Banquete”, exposição individual da artista que inaugura o espaço da Galeria Movimento no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, reúne um conjunto de cerca de quinze trabalhos recentes, em sua maioria pinturas realizadas nos últimos anos, de 2018 para cá, junto de um grupo de trabalhos realizados sobre papel, finalizados com molduras antigas garimpadas pela artista em feiras e afins. 

 

A dimensão da teatralidade em sua produção artística, iniciada ainda na primeira década dos anos 2000, parece atingir aqui tanto seu ápice quanto um ponto de inflexão, virada. Em seu corpo de trabalho atual, Teixeira segue a evidenciar o interesse pela narrativa de um teatro da corte, pela mise-en-scène das dinâmicas sociais de uma aristocracia antiga e ultrapassada, ainda que nunca identificada temporal ou espacialmente.

 

O que vemos é a construção de ambientes e cenários habitados por personagens que parecem subverter a lógica das narrativas históricas hegemônicas, convidando-nos a assistir, como na plateia de um teatro, à cenas aparentemente prosaicas, mas imbuídas de altas doses de humor e pastiche, perspicácia e acidez. Situações e personagens capazes de refletir sobre si próprios e questionar suas origens e disfuncionalidades, a um só tempo. Um teatro absurdo e abundante: em cor, volume e forma.

 

Onde antes naturalmente veríamos figuras masculinas reproduzindo as dinâmicas da vida social de uma corte ultrapassada (e hoje impossível), somos apresentados aqui à figuras femininas que brindam com seus falos, a festejarem a utópica soberania conquistada a duras penas em uma sociedade ainda hoje marcada profundamente pelo patriarcado, em seu triunfo e derrocada.

 

Construídas a partir de grossas camadas de tinta acrílica, apresentam-se espessas, afirmativas; figuras que reclamam lugares outrora negados à si mesmas, conscientes dos obstáculos infindos que lhes foram reservados até alcançarem o almejado protagonismo nos palcos (e na vida, portanto, por quê não?). Tal uso robusto dos recursos materiais por parte da artista – onde a tinta revela-se em relevos e torções diversas - aprofunda ainda mais o senso de encenação em jogo em suas obras.  

 

Estamos diante de um engenhoso processo de farsa e blefe, onde constantemente somos lembrados que o que vemos é fruto de matéria pictórica, esculpida sobre telas de diferentes escalas e por vezes apresentadas em molduras antigas, garimpadas pela artista em antiquários e afins. Se de primeira parecemos estar sendo lançados a um olhar sobre ontem, em cenas de um tempo passado e hoje enterrado em suas muitas contradições, logo entendemos que estamos a ser conduzidos, de fato, à universos transtemporais, onde camadas distintas de temporalidades mesclam-se e fundem-se. Confundem-se?, nos perguntamos.

 

Em seu célebre ensaio de 2006, “O que é o contemporâneo?”, o filósofo italiano Giorgio Agamben discorre:

 

Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para perceber nele não as luzes, mas o escuro. (...). Pode dizer-se contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. (...) É como se aquela invisível luz, que é escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora.”

 

Talvez resida aí a potência máxima da produção da artista: lançar-se à uma delicada costura entre um olhar debruçado sobre tempos outros, sem abandonar sua incessante busca por refletir sobre os tempos atuais. Afinal, o que é ser contemporâneo se não uma afiada capacidade de mirar seu próprio tempo e, com certa distância, também vislumbrá-lo, analisa-lo, sem a ele deixar de pertencer integralmente?

 

Neste jogo temporal, as pinturas de Teixeira, no entanto, nos recordam constantemente da materialidade da tinta, da superfície das telas, das capacidades múltiplas e mutantes dos materiais a nos seduzir e nos fisgar ora pelo excesso ora por sua dimensão tátil, extra-sensorial. Seu “banquete”, por vezes, flerta com os insuspeitos formigamentos causados pelas imagens virtuais, abundantes nos dias de hoje, sedentas por nos causar efeitos reais, físicos. Tola tentativa insensível das máquinas programadas. Aqui, estamos sempre diante da matéria física, concreta – em textura, contorno e voluptuosidade. Pintura e presença, fruição insubstituível no caos de uma difusa era de visibilidades extremas, esgarçadas.

 

Teixeira bebe – embriaga-se! -  do ontem sempre a olhar para o agora. A contemporaneidade de sua pintura é típica dos artistas que buscam escavar ao seu próprio tempo, sem deixar de nunca nos lembrar, evidente, do complexo jogo da representação sem o qual a pintura não seria possível. Como no farsesco bolero da década de 1970, de autoria do compositor porto-riquenho Tite Curet Alonso, as pinturas de Viviane Teixeira parecem nos sussurrar: “perdona que no te crea… me parece que es... teatro”.

Victor Gorgulho

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